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“Saque”, palavra proibida

Emissoras de rádio e televisão na Venezuela evitam mostrar imagens dos saques das lojas de eletrodomésticos para evitar sanções do governo

Um grupo de pessoas compra eletrodomésticos em Caracas.
Um grupo de pessoas compra eletrodomésticos em Caracas.MIGUEL GUTIERREZ (EFE)

Os canais de televisão e as emissoras de rádio da Venezuela estão apelando para todo tipo de eufemismos para informar, quando chegam a fazê-lo, sobre a pilhagem às lojas que sofreram intervenção governamental na sexta-feira passada. Na segunda-feira, um comunicado da estatal Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) aconselhou a mídia a evitar usar a palavra “saque” nas reportagens.

Tudo começou quando o presidente Nicolás Maduro decidiu ocupar a Daka, uma das cadeias de varejo mais importantes do país, com o argumento de que ela lucrava demais por ter recebido dólares preferenciais para a importação de mercadorias. Para dar uma lição à empresa privada, que obtém dólares subsidiados da estatal Cadivi mas calcula os custos de reposição pelo valor do dólar no mercado paralelo, o governo decidiu vender todo o estoque a preços regulados. “Que não sobre nada nas estantes”, disse Maduro.

Por isso, a destruição causada no sábado por uma turba ávida por televisores e lavadoras em liquidação na sucursal da Daka em Valência foi mencionada de passagem ou foi omitida deliberadamente. A mesma sorte tiveram os acontecimentos no início da semana em outros pontos cardeais do país: San Félix, no sul; Puerto de la Cruz, no leste e Ciudad Ojeda, no oeste. Os vídeos nas redes sociais e as denúncias na imprensa impediram que a pilhagem, palavra que foi banida do vocabulário da mídia venezuelana, fosse sepultada pela propaganda avassaladora do governo, empenhado em assegurar que está trabalhando para proteger os salários dos cidadãos.

Declarações do chefe de Estado condenando os saques foram transmitidas, mas sem explicar por que as pessoas avançavam sobre as lojas. A televisão venezuelana decidiu se autocensurar para evitar sanções que mais tarde possam levar à perda da concessão estatal. Deste modo, os rumores crescem e os telespectadores saem perdendo. Isto fica muito evidente nos esforços dos jornalistas de rádio para evitar que os entrevistados mencionem a palavra “saque” e nos testemunhos recolhidos nas ruas por repórteres, que tentam cortar expressões que possam despertar a ira do poder.

A origem da precaução é antiga. Dentre as reflexões suscitadas após os tumultos violentos do “caracazo” de fevereiro de 1989 – manifestação popular contra um conjunto de medidas econômicas neoliberais impostas pelo então presidente, Carlos Andrés Pérez – se destacou a cobertura televisiva, que exibiu os fatos sem censura. Desde então, a mídia local leva a culpa de ter sido catalisadora dos protestos.

O anúncio da Conatel criou, talvez inadvertidamente, uma interpretação oficial do artigo 27 da Lei de Responsabilidade Social no Rádio e Televisão que proíbe a difusão de mensagens que “fomentem a inquietação entre os cidadãos ou afetem a ordem pública”. Até este fim de semana, a margem ambígua de interpretação da norma provocou todo tipo de leituras, sempre temerosas de sanções. Mas ainda havia alguma margem para trabalhar. Quando trabalhava na Globovisión, um canal venezuelano de notícias, o advogado Ricardo Antela, especialista em direito constitucional e membro da equipe de consultores jurídicos da empresa, recomendava aos jornalistas que ao informar sobre tumultos exibissem apenas as imagens menos fortes e só usassem a palavra “saque” se fosse imprescindível, para não criar inquietação.

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Mas o que ocorreu, disse Antela, não tem precedente. “É desproporcional”, admitiu. “Uma coisa é que se perca a medida na hora de se dizer uma palavra, outra é impedir que ela seja mencionada”, acrescentou. Após a proibição expressa contida na sugestão do governo, muitos jornalistas sentem que as restrições e a coação à informação continuam aumentando.

Tradução de Cristina Cavalcanti

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